Comando Sul
Como operam os Estados Unidos na América Latina
Adrián Murano (Revista Veintitrés)
As revelações resultantes dos documentos que Edward Snowden divulgou
acerca do sistema de espionagem global montado pelos EUA são mais uma
peça para a compreensão do colossal sistema de ingerência na vida
interna de países soberanos que o imperialismo organizou. Na América
Latina, e no chamado Terceiro Mundo em geral, a USAID é outra peça
fundamental dessa engrenagem.
Um ex funcionário da CIA revelou um perigoso programa de espionagem e
intervenção política na região. Quem são e como trabalham para
desestabilizar os governos populares da Unasur. Edward Snowden não é um
herói, mas a humanidade deve-lhe um enorme favor. Os documentos que o ex
funcionário da CIA filtrou para o mundo demonstram o que até agora a
política global sabia mas não se atrevia a denunciar: que os Estados
Unidos não pouparão crimes para continuarem sendo o que são. Um império
voraz.
Nós, habitantes de América latina, poderíamos presumir que não
necessitávamos de Snowden para o saber. Nesta região, os Estados Unidos
promoveram golpes, ditaduras genocidas, políticas económicas predatórias
e elites financeiras mafiosas com o evidente objectivo de rapinar os
seus recursos naturais, materiais e humanos. A intervenção foi tão vasta
e letal que na diplomacia regional ainda se troca uma velha piada:
“¿Sabe por que é que nos Estados Unidos não há golpes de Estado? Porque
ali os Estados Unidos não têm embaixada”.
Apesar das evidências históricas em vários países de Latinoamérica
como a Argentina, abunda quem acredite que a intervenção estado-unidense
em assuntos domésticos é pura ficção. O equívoco foi alimentado por
formadores de opinião aliados ou cooptados pela diplomacia
estado-unidense, como revelaram os telegramas difundidos por Wikileaks,
onde abundam referências aos vínculos entre A Embaixada e o sistema
tradicional de media que no nosso país é dirigido pelo grupo multimédias
Clarín. Um detalhe: referir-se à sede diplomática estado-unidense como
“A Embaixada” explicita até que ponto se naturalizou os EUA como farol
político. Mas não são as sedes diplomáticas as únicas que perpetram as
actividades intervencionistas dos EUA na região. O país do Norte conta
com uma complexa rede de organismos que, com fachadas várias, foram e
são utilizados para tarefas sujas que vão desde a espionagem e a
formação de quadros dirigentes dependentes até à desestabilização de
governos e economias com o seu consequente custo político e social.
Uma das organizações mais activas é a United States Agency
International Development (USAID), um organismo que os EUA criaram com a
proclamada intenção de desenvolver tarefas humanitárias nos países do
Terceiro Mundo. A sua origem remonta à Aliança para o Progresso, criada
em 13 de Março de 1961 pelos mesmos funcionários que vários anos antes
tinham dado à luz o Plano Marshall com a intenção de colocar o seu país à
cabeça da reconstrução da Europa do pós-guerra. A Aliança fracassou
pouco depois de nascer uma vez que os países da região rejeitaram as
condições da “revolução pacífica e democrática” que os EUA pretendiam
impor em troca dos 20.000 milhões que prometiam investir. Mas antes de
ser cancelada, em Novembro de 1961, foi fundada a USAID, uma de sus
agencias que, formalmente, devia veicular parte dos investimentos em
programas de desenvolvimento humanitário, fachada que se mantém até
hoje.
A fantasia filantrópica permitiu-lhe forjar, através de generosos
contributos financeiros, uma rede de fundações e ONGs destinadas a
difundir os benefícios do alinhamento com os EUA e a sua “american way
of life” mediante propaganda e programas de formação. Mas essa é apenas a
face amável da sua tarefa. Ligeiramente maquilhado, o verdadeiro rosto
da agencia é mais hostil: intervir nos processos políticos da região com
o pretexto de proteger a segurança nacional do seu país.
A militarização dos objectivos da USAID culminou em 2010 quando o
presidente Barack Obama incluiu o general Jeam Smith – um estratega
militar que esteve na OTAN – no Conselho de Segurança, apenas com a
função de acompanhar os programas de “assistência social” que a agencia
tinha em andamento. E como director adjunto foi nomeado Mark Feierstein,
cuja folha de serviços encaixava nos desafios que os EUA antevêm na
região: perito em guerras de quarta geração – ou campanhas de
desinformação –, e proprietário de Greenbarg Quinlan Rosler, uma empresa
que proporciona orientação estratégica sobre campanhas eleitorais,
debates, programação e investigação.
Alérgico aos governos populares que se estendem pela América latina,
Feierstein comprovou a eficácia do seu método como assessor de Gonzalo
Sánchez de Lozada durante a campanha que o depositou na presidência de
Bolívia. Goñi, como o chamavam na sua pátria, foi o paroxismo da
colonização política que os EUA derramaram sobre os países do Sul nos
anos noventa. Criado, educado e formado em solo estado-unidense, Sánchez
de Lozada voltou à sua terra de nascimento para ser presidente pela mão
de Feierstein. Durou no cargo pouco mais de um ano: o chamado “Massacre
do Gás”, em 2003, onde morreram mais de sessenta pessoas, ejectou-o do
poder e devolveu-o aos EUA, onde vive como fugitivo da Justiça boliviana
amparado pelo governo que colocou o seu amigo Feierstein à frente da
USAID.
As correrias do seu director não são a única coisa que liga a agencia
à Bolívia. No passado 1 de Maio, o presidente Evo Morales não sabia que
o escândalo Snowden o levaria a protagonizar uma vergonhosa detenção na
Europa (ver nota aparte). Mas sabia aquilo de que a USAID era capaz.
Por isso, nessa jornada emblemática onde os trabalhadores celebram o seu
dia, o presidente anunciou que expulsava a agencia de solo boliviano
por “ingerência política” e “conspiração”. Dias depois, o ministro da
Presidência, Juan Ramón Quintana, detalhou: “Não se trata de uma
inocente agencia de cooperação filantrópica dos Estados Unidos para com a
Bolívia e o mundo. A agencia estado-unidense serviu para legitimar as
ditaduras entre 1964 e 1982, para promover o neoliberalismo entre 1985 e
2005, e para além disso é um factor externo que alimenta a
instabilidade no país desde 2006”.
Um dos factos que chamou a atenção do governo boliviano foi a
materialização, em 2007, de um convénio entre o prefeito de Pando
Leopoldo Fernández e a USAID para levar por diante “programas sociais”
em Bolpedra, Cobija e El Porvenir. O apoio logístico esteve a cargo do
Comando Sul e a cobertura institucional da Iniciativa de Conservação da
Bacia Amazónica. Outro episodio que motivou a expulsão foi a activa
participação da agencia estado-unidense, via Wildlife Conservation
Society (Sociedade de Conservação da Vida Selvagem), na disputa violenta
entre os povoadores de Caranavi e Palos Blancos pela localização de uma
fábrica processadora de frutas em Janeiro de 2010, a poucos dias de Evo
Morales assumir o seu primeiro mandato no Estado Plurinacional.
A utilização de fundações e ONGs para terceirizar operações é uma
prática habitual da USAID. Na Argentina, por exemplo, há uma dezena de
fundações que operam por conta e ordem da agencia estado-unidense. Que
os movimentos sejam mais sigilosos não implica que sejam menos potentes.
Um exemplo: entre el 8 e 12 de Abril deste ano, a USAID financiou uma
cimeira da direita internacional. Organizada pela Fundación Libertad – o
tentáculo predilecto da agencia no nosso país –, acorreram ao encontro o
Nobel Mario Vargas Llosa e o seu filho Álvaro – adversários dos
governos populares que habitam a região –; José María Aznar –
ex-presidente espanhol que apoiou a invasão do Iraque –; o pinochetista
Joaquín Lavín; Marcel Granier, presidente da emissora venezuelana RCTV
que apoiou e impulsionou o golpe contra Hugo Chávez em 2002, e a cubana
anticastrista Yoani Sánchez, que à última hora desistiu da visita.
O seminário abundou em críticas contra os processos emancipadores da
região. E os intervenientes, sem subtilezas, pediram para acabar com os
governos populares em curso para os substituir por outros mais
“modernos”, de acordo com os conceitos de “democracia” que os EUA
impuseram como doutrina global. Não foi, é certo, uma posição original.
Cinco anos atrás, no mesmo cenário embebido em prosperidade sojeira,
tinha-se realizado um seminário semelhante, com o próprio Vargas Llosa
como animador principal.
Aquele seminário contou com vários “peritos” alinhados com as
políticas do Consenso de Washington como o jornalista de La Nación
Carlos Pagni, o ex candidato presidencial Ricardo López Murphy, e
Mauricio Macri, regente do Pro e da Fundación Pensar, co-organizadora do
evento.
Estas fundações, como outras similares que operam na região, contam
com o aval financeiro do National Endowment for Democracy (NED, Fundação
Nacional para a Democracia), financiada oficialmente pelo Congresso
norte-americano. Mas a vinculação não se esgota nas contribuições. Nos
anos oitenta, muito antes de ser director da USAID, o inefável
Feierstein trabalhou para a NED em Nicarágua. O seu objectivo: evitar o
triunfo do sandinista Daniel Ortega. Conseguiu-o patrocinando a
candidatura de Violeta Chamorro.
As operações da dupla USAID-NED na América latina foram reveladas por
Wikileaks, o sitio que difundiu milhões de telegramas internos do
Departamento de Estado. Num deles, o ex embaixador estado-unidense em
Venezuela, William Brownfield, revelou como o seu país alimentou a
oposição a Hugo Chávez com ideias e milhões. O telegrama, enviado da
embaixada dos EUA em Caracas em Novembro de 2006, detalhava como dezenas
de organizações não-governamentais recebiam financiamento do governo
norte-americano por intermédio da USAID e do Escritório de Iniciativas
de Transição (Office of Transition Initiatives – OTI –). Este
operacional incluiu “mais de 300 organizações da sociedade civil
venezuelana”, que iam desde defensores dos deficientes até programas
educativos.
Na aparência, esses programas tinham objectivos humanitários, mas foi
o próprio embaixador Brownfield quem detalhou os objectivos reais
desses investimentos: “A infiltração na base política de Chávez… a
divisão do chavismo… a protecção dos interesses vitais dos EUA… e o
isolamento internacional de Chávez”.
Brownfield escreveu que o “objectivo estratégico” de desenvolver
“organizações da sociedade civil alinhadas com a oposição representa a
maior parte do trabalho da USAID/OTI na Venezuela”. A confissão dos
próprios….
Numa excepção ao seu modus operandi, no Paraguai a agencia realizou o
trabalho sujo sem intermediários. Investiu 65 milhões de dólares no
projecto “Umbral”, um programa que incluiu a elaboração de um Manual
Policial, o que le permitiu ganhar posições numa instituição que viria a
ser chave no devir político do país. Foi a policia, com uma brutal e
injustificada repressão rural, quem serviu de bandeja a justificação
para derrubar o presidente Fernando Lugo. Já o tinha predito o ministro
da Corte argentina Raúl Zaffaroni: sepultado o partido militar, são as
forças de segurança quem exercerá o papel de força de choque dos poderes
fácticos da região interessados em interromper processos políticos que
contrariem os seus interesses.
As operações da agencia revelam que a verdadeira ameaça para a
consolidação do processo político da região não é a espionagem, mas as
decisões que os EUA tomem a partir dessa informação. Como ficou
demonstrado no Iraque – onde o Pentágono utilizou informação falsa para
justificar a invasão –, nem sequer é necessário que os dados sejam
fiáveis. Basta que a CIA ou algum organismo similar avalie que algum
país de América latina representa uma ameaça para a segurança nacional
estado-unidense para que se avance com ataques preventivos contra essa
nação. A ofensiva pode ser brutal, como no Iraque, ou mais sofisticada,
executando tarefas que desestabilizem um governo popular. Uma
conspiração que nunca descansa.
Todos sob a lupa
A partir das revelações de Edward Snowden, o ex empregado da Agencia
Central de Inteligência (CIA) e da Agencia de Segurança Nacional (NSA)
dos Estados Unidos, foi levantado um véu que confirma a rede de
espionagem do governo de Barack Obama. Tudo começou quando ofereceu a
The Guardian e The Washington Post a publicação de documentos e
informação confidencial. Prosseguiu com o episodio do sequestro do
presidente Evo Morales quando da sua visita à Rússia, onde se supunha
que estava Snowden, quando não lhe foi permitido usar o espaço aéreo de
Espanha, Itália, Portugal e França por se suspeitar que Snowden estava
escondido no seu avião. O facto mereceu o repudio de todos os
mandatários da Unasur que se reuniram de forma urgente em Bolívia, para
brindar o seu apoio a Evo. Enquanto Snowden procurava asilo político e
com os Estados Unidos procurando caçá-lo por todo o planeta, voltou há
poucos dias a revelar novos documentos, que desta vez foram publicados
no diário brasileiro O Globo. Ficou a conhecer-se que a rede de
espionagem dos Estados Unidos se expandiu por toda América latina,
operando fortemente no Brasil, México e Colômbia, mas com uma rigorosa
vigilância em países como a Argentina, Venezuela, Equador, Chile, Peru e
Panamá. Os dados confirmam a espionagem via satélite de comunicações
telefónicas, correios electrónicos e conversações online, até pelo menos
Março de este ano. A monitorização realizava-se através de programas de
software: o Prism (Prisma) que permite o acesso a e-mails, conversações
online e chamadas de voz de utilizadores de Google, Microsoft e
Facebook e o Boundless Informant (Informante Sem Limites), que permitiam
violar todo o género de comunicações internacionais, faxes, e-mails,
entre outros. Os temas mais controlados pelos espias foram o petróleo e
acções militares em Venezuela, energia e drogas em México, a cartografia
dos movimentos das FARC em Colômbia, para além da agonia e morte de
Hugo Chávez.
A presidente Cristina Fernández de Kirchner manifestou a sua
preocupação no acto de 9 de Julho em Tucumán e sublinhou: “Causa
calafrios quando nos damos conta de que nos estão espiando a todos
através dos seus serviços de informações. Mais do que revelações, são
confirmações do que tínhamos acerca do que estava a acontecer”. De
caminho, aproveitou para lançar um alerta: “Os governantes dos povos da
América do Sul, que temos combatido nesta década acompanhados por
milhões de compatriotas, temos o dever de reparar no que se está a
passar e de unir as nossas forças”. Na sexta-feira reúnem-se os
representantes do Mercosur e a Presidente espera “um forte
pronunciamento e pedido de explicações” ao governo de Obama.
Publicado no Portal do PCB
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